Servidores debatem luta antirracista com análise de livro e vivências pessoais
Roda de conversa usou o “Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa Djamila Ribeiro, como ponto de partida para debater a temática

Vivências pessoais no enfrentamento ao racismo, na condição de vítima ou de testemunha, associado a um mergulho no livro “O Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa Djamila Ribeiro, compuseram o enredo de uma roda de conversa que trouxe a luta contra o racismo para o Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso (TRE-MT). O bate-papo carregado de aprendizado e emoções do tipo “álcool na ferida” reuniu cerca de 100 pessoas, no plenário da sede da Justiça Eleitoral no Estado, em Cuiabá, e teve como público homens e mulheres, brancos e negros que atuam na instituição.
A roda de conversa foi conduzida pela juíza Katia Rodrigues Oliveira, presidente do Comitê Gestor de Promoção de Políticas para a Equidade Racial do TRE-MT, e contou a participação das servidoras Andréia da Silva Noronha, Avanir de Carvalho Corrêa, Ivanete da Silva Prado, Janete Clementino do Livramento e Ozeny Vicente da Silva. A conversa teve a colaboração da jornalista Julianne Caju, professora e pesquisadora da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação (Seciteci), doutoranda em EduComunicação Antirracista pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). O evento foi transmitido pelo canal do TRE-MT, no YouTube. (clique aqui para assistir)
Atuando na 4ª Zona Eleitoral de Poconé (a 100 km de Cuiabá), a magistrada relatou que como mulher branca carrega muitas responsabilidades e privilégios. Contou que certa vez, durante visita à cidade mineira de Ouro Preto, ouviu de um morador em situação de rua que aquela cidade linda repleta de monumentos e igrejas havia sido construída à base da escravidão e de muito sofrimento. Relatou ainda que, na juventude, foi testemunha de um ato racista contra uma grande amiga, que foi confundida com atendente de loja de departamento.
“A partir desse momento entendi que não só não podemos ter atitudes ofensivas como a gente precisa ter uma atitude proativa, de se posicionar contra essas práticas e atuar na luta antirracista. A gente tem que agir. O tal do racismo velado, em que as pessoas tem a crença de a função de atendente só pode ser exercida por pessoas negras. Que uma pessoa negra não pode ter o cargo de gestão, de autoridade, de comando. Isso é extremamente errado. É desumano, é injusto. A capacidade de alguém não pode ser medida pela cor”, relatou.
A servidora Andréia da Silva Noronha fez um recorte do livro ao tratar do racismo estrutural e o contexto histórico por de traz da mão de obra escrava trazida da África para Brasil e elaborou cinco respostas para cinco perguntas tendo o livro como matéria-prima. “O que significa, na prática, ser antirracista. Aí a Djamila explica que ser antirracista é mais do que dizer eu não sou racista. Isso não basta. É preciso agir, questionar privilégios, rever posturas e enfrentar desigualdades. Mesmo quem busca consciência racial já reproduziu, em algum momento, violências estruturais. A prática antirracista começa no cotidiano, escutando, aprendendo, corrigindo os erros e se posicionando”, sublinhou.
O depoimento mais emocionante do bate-papo foi o da servidora Ivanete da Silva Prado, que foi vítima de racismo sem saber do que tratava, na escola, ainda criança. “A primeira vez que eu senti isso, sem saber o que era, foi no meu primeiro ano na escola. Eu percebia um tratamento diferente. Aquela famosa fotografia escolar que você tirava na frente de uma Bandeira, a professora ia lá e arrumava, penteava o cabelo tudinho dos coleguinhas, quando chegava a minha vez, ela olhava para mim e pulava para o aluno seguinte. Eu não entendia. A gente vai se encolhendo na escola”, contou.
A representatividade e a figura do “negro único” foram as contribuições na análise do livro levada pela servidora pública Avanir de Carvalho Corrêa. “A Djamila fala no livro que as cotas não são privilégios. São políticas afirmativas que tentam reverter todo aquele privilégio que a branquitude teve ao longo do dos séculos. Ela também fala da figura do negro único, aquela pessoa de destaque na empresa, instituição ou escola qual o percentual ele presenta em um universo de 56% da população brasileira. Não podemos nos conformar com a figura do negro único”, provocou.
No recorte sobre cultura e autores negros, a servidora Janete Clementino do Livramento trouxe sua experiência vivida aplicada às contribuições do livro. Disse que cresceu vendo Xuxa. Angélica, Eliana, mulheres loiras, e brincando com bonecas Barbie e que não gostava da ideia de boneca com cabelo crespo.
“Fui educada colégio particular, eram poucas negras na minha sala. No curso de Computação, na UFMT, éramos dois ou três negros. Quando fui procurar meu primeiro emprego, a exigência era ter boa aparência. Por boa aparência entendia-se pessoas brancas. Por isso, vi no serviço público uma forma de não ver minha aparência, mas minha capacidade, minha inteligência.”, desabafou.
A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. A informação extraída do livro Pequeno Manual Antirracista foi levada para o debate pela servidora Ozeny Vicente da Silva. “É falar sobre o judiciário e sobre racismo institucional. A autora narra que, infelizmente, o critério da cor ainda está institucionalizado no Brasil. E está presente nas ações policiais, nos julgamentos. Então a gente tem que ter a sensibilidade de perceber, de estarmos atentos, de observar nossa conduta, nossos posicionamentos diante do racismo e não nos calar”, completou.
Para a jornalista e pesquisadora Julianne Caju grande parte da luta antirracista por pessoas negras passa pelo sentimento de pertencimento. “Só tem 10 anos que eu me tornei negra, que me reconheci com mulher negra. E ao me tornar negra, fui ler, estudar, achar respostas, seguir autoridades negras e negros para eu aprender. Fui olhar para a dinâmica da minha família. Por outro lado, a questão história explica muitas situações no presente. Por que a maioria dos profissionais da limpeza das nossas cidades são negros? É por que eles são preguiçosos? É por que eles não quiseram estudar? Por que que grande parte dos cargos de destaque ou de melhor poder aquisitivo estão com os brancos? questionou a convidada.
Jornalista Anderson Pinho
#PraTodosVerem - A imagem mostra do plenário do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso (TRE-MT) com diversas pessoas assistindo a um evento realizado pela instituição. No palco, seis mulheres estão sentadas em cadeiras giratórias, participando de um painel ou roda de conversa, enquanto uma mulher em pé, ao lado de um púlpito, fala ao microfone. Atrás das participantes, é possível ver a estrutura típica de um plenário, com o brasão da Justiça Eleitoral, uma cruz na parede e a bandeira do Brasil. Livros estão expostos em uma mesa à esquerda do palco.